01/10/2025 - Imagem ilustrativa de cannabis e óleo de cannabis
Pixabay
A Advocacia-Geral da União pediu ao Superior Tribunal de Justiça mais seis meses de prazo para a publicação da regulamentação do uso de medicamentos a base de cannabis no Brasil.
O pedido de extensão por 180 dias foi feito na terça-feira (30) à ministra Regina Helena Costa, relatora do processo que corre no STJ.
De acordo com o plano de ação entregue em maio ao STJ, a regulamentação normativa deveria ser publicada até o dia 30 de setembro.
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O acórdão determinou que a União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) editassem a regulamentação, para fins exclusivamente medicinais da cannabis, autorizando:
importação de sementes;
plantio;
cultivo;
comercialização.
Segundo a AGU, a ampliação do prazo tem como objetivo discutir soluções para que a regulamentação seja efetiva e abrangente, e "defina as atividades necessárias à garantia da segurança à saúde".
Para isso, o pedido propõe um novo cronograma para ser cumprido em seis meses.
O cronograma inclui oitiva da sociedade civil, análise e compilação das informações e contribuições, elaboração de documentos e minuta de ato normativo.
Por fim, haverá a edição da norma de regulamentação.
Decisão judicial
A Anvisa discute neste momento uma nova regulamentação para produtos à base de cannabis medicinal por dois motivos principais: a pressão judicial e a necessidade de atualizar regras antigas diante do crescimento do uso desses produtos no Brasil.
O ponto de partida foi uma decisão do STJ publicada em novembro de 2024.
Nessa decisão, o STJ reconheceu que o cânhamo industrial — uma variedade da planta cannabis com menos de 0,3% de THC (substância que causa efeitos psicoativos) — não pode ser tratado como droga ilegal, pois não tem capacidade de causar dependência.
À época, o Tribunal determinou que a Anvisa e a União teriam seis meses para criar regras claras sobre o cultivo e comercialização dessa planta, exclusivamente para fins medicinais e farmacêuticos.
Esse prazo venceu em maio de 2025, mas a regulamentação não foi publicada.
Em resposta, o governo federal apresentou à Justiça um plano de ação, coordenado pela Advocacia-Geral da União (AGU), com medidas práticas para organizar o setor. O plano prevê:
Normas para todas as etapas da cadeia produtiva, desde a obtenção de sementes e mudas até a entrega dos medicamentos aos pacientes;
Reconhecimento oficial das associações de pacientes, que hoje atendem milhares de pessoas com produtos mais acessíveis;
Articulação entre ministérios — Saúde, Justiça, Agricultura e Desenvolvimento Agrário — e a própria Anvisa, para garantir segurança, controle e acesso;
Diálogo com especialistas, instituições científicas e representantes do setor regulado, para construir uma política pública ampla e técnica.
A Anvisa também reconheceu que a Resolução RDC 327/2019, que hoje regula os produtos de cannabis no Brasil, precisa ser atualizada.
Em março de 2025, a agência abriu uma consulta pública para receber sugestões da população sobre mudanças na norma.
A Anvisa deixou claro que essa revisão não tem relação com o uso recreativo da cannabis, nem com o cultivo por pessoas físicas. O foco é garantir que os produtos usados para tratar doenças tenham qualidade, segurança e preço acessível, especialmente para quem depende do SUS.
???? O que são os canabinoides e como atuam no corpo
Fiocruz diz ser fundamental o investimento científico em medicamentos à base de cannabis
A planta Cannabis sativa possui mais de 100 canabinoides identificados. Os principais são:
CBD (canabidiol) – não psicoativo, usado para epilepsia, ansiedade e autismo
THC (tetraidrocanabinol) – psicoativo, com efeito analgésico e relaxante
CBN (canabinol) – derivado do THC, com efeito sedativo
CBG (canabigerol) – precursor dos outros canabinoides
CBC (canabicromeno) – presente em várias amostras, com potencial terapêutico
Esses são alguns dos compostos são os principais responsáveis pelos efeitos terapêuticos e psicoativos da planta, mas há muitos outros com potencial medicinal ainda em fase de pesquisa.
Esses compostos interagem com o sistema endocanabinoide, presente em todos os mamíferos. Esse sistema regula funções como sono, humor, dor e apetite. A resposta ao tratamento varia de pessoa para pessoa, o que exige acompanhamento médico e controle de qualidade rigoroso.
?? O que a Anvisa pode mudar
A proposta de revisão da RDC 327/2019 inclui mudanças que podem afetar diretamente o acesso de pacientes aos medicamentos. Entre os pontos mais sensíveis estão:
A limitação do teor de THC a 0,2% ou 0,3% para produtos não registrados como medicamentos;
A restrição das formas de administração, priorizando o uso sublingual;
A exclusão de associações comunitárias que não atendam aos padrões industriais exigidos.
Essas mudanças preocupam entidades como a Abrapango (Associação Brasileira do Pito do Pango), que atua na defesa do acesso seguro e humanizado à cannabis medicinal.
A ONG, que tem sede em Brasília, oferece suporte jurídico e técnico a pacientes, capacita profissionais da saúde e também produz e comercializa medicamentos à base de cannabis.
Segundo levantamento interno, 63% dos usuários da entidade dependem de produtos com THC acima de 0,3% ou derivados desta substância, como o Canabinol (CBN).
“Se a regulamentação limitar esse teor, muitos pacientes vão ficar sem tratamento adequado. O THC é essencial para casos de dor crônica, câncer, Parkinson e Alzheimer. Se o cânhamo for regulamentado até esse teor, alguns pacientes não vão poder tratar a patologia da maneira certa”, afirma ofarmacêutico e Mestrando pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Diogo Cobo.
Na UFSC, Cobo faz pesquisas com foco no desenvolvimento e validação de métodos analíticos aplicados a óleos e extratos de cannabis em parceria com associações como a Abrapango.
Segundo o farmacêutico, as condições para o plantio da cannabis no Brasil dificultam que a planta aqui mantenha índices de THC inferiores a 0,3%.
Isso porque esse limite adotado em vários países para diferenciar o cânhamo industrial da cannabis psicoativa não considera as condições tropicais brasileiras.
O clima quente, a alta incidência solar e o solo fértil favorecem o desenvolvimento da planta e estimulam naturalmente a produção de THC, mesmo em variedades originalmente selecionadas para ter baixo teor da substância.
Além disso, as sementes precisam ser adaptadas geneticamente — um processo chamado de tropicalização — para crescer em ambientes como o brasileiro sem ultrapassar o limite legal
Sem essa adaptação, há risco de que a planta ultrapasse o percentual permitido, o que pode levar ao descarte da produção e até à criminalização do cultivo.
Para associações e pequenos produtores, isso representa um obstáculo quase intransponível, que pode restringir o papel das comunidades e comprometer o tratamento de milhares de pessoas que dependem dessas iniciativas.
“Se essa regulamentação for aprovada do jeito que está, ela não atende à realidade brasileira. Vai prejudicar os pacientes e a ciência também”, afirma Diogo Cobo.
Associações ajudam no acesso aos medicamentos
O cultivo medicinal da cannabis
O uso medicinal da cannabis começou a ser autorizado pela Anvisa em 2014, com os primeiros pedidos de importação individual.
Em 2015, pacientes passaram a conseguir acesso a produtos com prescrição médica. A comercialização nacional foi regulamentada em 2019, com matéria-prima importada.
As associações civis sem fins lucrativos surgiram como alternativa para famílias que não conseguiam pagar pelos medicamentos à base de cannabis vendidos em farmácias ou importados.
Hoje, estima-se que há mais de 200 entidades em funcionamento no Brasil, mas apenas uma pequena parcela delas têm decisões judiciais que autorizam a produção de medicamentos.
Essas associações atuam com rigor técnico, realizando controle de qualidade, análise laboratorial e rastreabilidade dos insumos. Algumas mantêm parcerias com universidades e desenvolvem pesquisas científicas com mestrandos e doutorandos.
A Abrapango, fundada em 2023, é uma dessas entidades. Ela começou atendendo um grupo pequeno de pacientes e hoje já conta com mais de 2 mil associados.
“O papel das associações é estar onde o Estado não está. Elas nascem como uma via de democratização do acesso à medicação”, afirma a Diretora Executiva da Abrapango Monica Barcelos.
Os medicamentos da Abrapango são desenvolvidos no Instituto de Química da Universidade de Brasília (UnB) e passam por análise na UFSC, com certificado que garante a quantidade exata de canabinoides e outros componentes.
“São nove projetos de pesquisa entre doutorandos, mestrandos e graduandos. Organizações de estudos e ciência que não podiam trabalhar com pesquisa e, ao fazer acordo com a Abrapango, agora podem por causa de decisões judiciais que nos permitiu fazer estudos e desenvolver produtos com a cannabis", aponta o presidente da Abrapango, Italo Nascimento.
O perfil dos pacientes da associação mostra como os canabidiois ajudam diferentes transtornos:
66% usam produtos ricos em THC;
71% têm transtornos mentais;
36% distúrbios do sono;
19% dores crônicas;
e 18% outras doenças.
Os números somam mais de 100% porque os pacientes muitas vezes têm mais de um transtorno.
????????? Quando o canabidiol é a única saída
Tamara de Matos é terapeuta holística e viu a sua vida mudar após o diagnóstico do filho, Ravi, de 5 anos. Ele foi diagnosticado com Transtorno Opositivo Desafiador (TOD) grave, além de sintomas de ansiedade e prejuízo das funções executivas.
O TOD é um distúrbio de comportamento que costuma surgir na infância e se caracteriza por um padrão persistente de atitudes desafiadoras, hostis e desobedientes, especialmente em relação a figuras de autoridade como pais, professores e cuidadores.
Entre os principais sintomas estão: irritabilidade constante, explosões de raiva, recusa em obedecer regras, comportamento provocador, tendência a culpar os outros pelos próprios erros e busca por vingança ou atitudes cruéis.
Antes do diagnóstico, Ravi enfrentava episódios de agressividade, autolesão leve, bruxismo noturno e isolamento na escola. Tamara também passou a sofrer perseguição de outras mães por conta do comportamento do filho.
“Sempre depois de algum episódio ele dizia chorando: ‘Eu não consigo me controlar. Eu não queria machucar meu amigo.’ Eu não conseguia mais trabalhar. Não via saída. A escola me pressionava, mas ninguém sabia como ajudar. Foi isso que me motivou a ir atrás de um tratamento que pudesse acalmar meu filho”, conta a mãe.
Após tentativas frustradas com medicamentos convencionais, Tamara buscou alternativas. O tratamento com CBD e CBN começou com apoio da associação Shantagaia e, depois, da Abrapango, que concedeu isenção à família por baixa renda.
“No primeiro dia já teve melhora. Ele começou a dormir melhor, entender comandos, se acalmar. Eu voltei a trabalhar. Nossa vida mudou. Em conforme o tempo passa, vejo ele respondendo cada vez mais ao tratamento. Ele mesmo diz que está mais feliz. Que consegue se controlar melhor.”
André Wilches, de 58 anos, também encontrou na cannabis medicinal uma forma de recuperar a qualidade de vida. Diagnosticado com enfisema pulmonar há quatro anos, ele enfrentava dores crônicas, depressão e falta de ar.
“Eu estava praticamente sem trabalhar. Com um cansaço muito forte, dores intensas. Não conseguia produzir nada.”
Ele buscou o tratamento para suas dores depois de acompanhar os resultados positivos do tratamento da esposa, que tem epilepsia, que decidiu buscar ajuda no óleo de cannabis. Hoje, ele usa um óleo com THC e teme que a nova regulamentação o impeça de continuar o tratamento.
“O óleo me salvou, principalmente nas dores crônicas. A cannabis tem um resultado fantástico, sem os efeitos colaterais da morfina, que acaba com a vida do paciente pouco a pouco. Se a Anvisa restringir as regras, vai ficar difícil pra gente seguir o tratamento. Vai ser uma tristeza enorme, um terror."
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